O lado racista do Design – Parte I

Antes de começar o post, quero declarar alguns pontos:

1) A opinião do post é minha, sobre minha ótica, minha vivência e minhas reflexões.

2) Não é um texto fácil. Há exposições de diversas formas de racismo no design e comunicação visual, e pode ter gatilhos mentais.

3) Vou apontar marcas, campanhas, industrias que apresentam ou apresentaram vies racistas. Caso o post chegar em alguma dessas empresas, ou os colegas profissionais que participaram do estudo de caso, vejam isso como uma oportunidade para pensar e repensar questões, atitudes opiniões a respeito do mundo, nossa sociedade e nossa responsabilidade na posição de comunicador, seja do produto oferecido, ou para quem cria. Leiam o post novamente e os outros links que estarão espalhados ao longo do texto.

4) Estou totalmente aberto a conversar, dialogar, debater da forma mais civilizada possível.

Atualização: Ficou muito grande o texto e irei dividir o post em duas partes.


Parece que em um passe de mágica, recentemente as empresas adotaram uma postura e um discurso de inclusão, combate ao racismo, machismo, misógina, xenofobia, transfobia, entre outras minorias. Vimos maiores representatividades de minorias conquistamos cargos importantes, protagonizando campanhas publicitárias, filmes, enfim, conseguindo seu espaço de merecimento. É ótimo, grandioso, tem que ser assim, mas ainda é pouco para atingirmos um grandioso objetivo, tudo precisa ter um inicio.

Sabemos que não é em e nunca será em um passe de mágica, pois varias minorias atingidas pela sociedade, colhem um mal implementado historicamente pela sociedade, e que isso tende a ser desconstruido. É um processo, uma tarefa diária que com nosso poder de comunicação, é cabível aumentar esse discurso para que cada vez mais consigamos ver pessoas marginalizadas vivendo em sociedade sem serem discriminadas.

Sem ingenuidade, entendemos que algumas empresas apenas adotam essa estratégia de fachada apenas para conseguir girar a economia e ter a aprovação do público,  afinal, o  mundo capitalista está ai pra isso. E nós, designers, marketing publicitários, criativos no geral ajudamos de alguma forma, por ser parte do nosso serviço. Com varias camadas, formas e metodologias de projeto, no final, alavancamos as empresas a venderem seu produto, sua ideia, seu negocio, seja ele qual for.

Bom, nem todo…

Um ponto interessante, no meu ponto de vista, das ramificações do design é a criação da identidade visual. É divertido estudar, analisar guias e manuais de identidade visual, explorar malhas de grid, formas, paletas de cores, conceito, aplicações, entre outros. Além de criar, pesquisar logos, tipografia, relacionado a marcas é algo que acho fascinante! Por ter um amplo alcance ao publico, algumas marcas conseguiram um carinho tão grande ao publico que o sentimento vai de encontro com o visual de uma forma visceral, que além de aplicações em outdoors, grandes formatos, encontramos em tatuagens ou cortes de cabelo, por exemplo. Leia mais sobre Lovemarks.

Uma maldição que acredito eu, a maioria dos criativos compartilham da mesma, é o fascínio por olhar e analisar qualquer marca de empresa, seja ela qual e como for. Andar as ruas para tomar um sorvete, ou caminhar em uma tarde de folga apenas para relaxar, ainda temos essa admiração pela comunicação visual. Difícil ir ao mercado sem analisar as embalagens, os rótulos de vinho, o desenho do lettering, ou pegar um cartão pessoal de uma oficina, o adesivo de uma loja de roupas, enfim, são diversas possibilidades, aplicações e formas de guardar esses materiais junto a minha biblioteca digital, que possuo desde 2009, intitulada brainstorm.

Em um dos meus passeios ao mercado, ou melhor, de pesquisa em design, estava com minha namorada Luisa na seção de padarias escolhendo os quitutes para um lanche, no meio de tantos pãezinhos, croissants, brioches, tantos doces bonitos e apetitosos a disposição, afinal, atualmente moramos, em Lisboa capital de Portugal, pois! Um produto me chamou a atenção.

Normalmente os produtos de mercado possuem embalagens transparentes, etiqueta adesiva branca com o valor nutricional, preço e outras informações, havia ali um produto bem embalado, com caixa de papel, logo bem destacada e um recorte central mostrando os produtos, ao invés de chamar atenção e abrir minha apetite, fiquei totalmente nauseado, com o coração palpitando e o estômago embrulhado.

Era um doce tradicional português, conhecido como Travesseiro de Sintra, que leva um doce creme de amêndoas com ovos, envolvido em camadas de massa folhada, empanado com açúcar no formato retangular. Nada de errado com o doce, mas sim, com a empresa fabricante, ou melhor, sua forma de apresentação e comunicação.

Uma das mais tradicionais fabricantes de travesseiros, é a Casa do Preto. Quase centenária, com fabricação artesanal desde 1931, a loja localizada em Sintra, não só distribui os travesseiros mas também outros tipos de doce. Não conhecia até então, nem sabia nada a respeito, mas como estava em compras, ou nesse caso, pesquisa não pude deixar de notar esse produto.

A embalagem muito bem feita, com papel cartão, retangular, ótimo para viagens ou presentear alguém. Com a marca aplicada em positivo (marca com o impressão de tinta preta), o nome da empresa é uma fonte tipografia romana (Caslon, Old Roman?) com caixa alta, e iniciais de cada palavra, proporcionalmente maiores que as demais letras, com a assinatura “desde 1931” em tamanho reduzido com a característica “Fabrico Artesanal”. Ao centro, um recorte especial mostrando os produtos, uma ótima estratégia para mostrar os docinhos. Nos cantos, direito e esquerdo, o logo ilustrado, não figurativo de uma pessoa negra, com o traje completo de um serviçal, com as mãos esticadas, oferecendo ou servindo os travesseiros. Junto ao logo, localizado logo espaço negativo, uma descrição sobre o doce, do lado esquerdo em português, e no direito em inglês. No rodapé da embalagem, centralizado, a descrição “Travesseiros de Sintra” e “6 Unidades” complementam a embalagem.

Seria uma leitura visual sintética a posteriori  daquilo que me deparei no mercado com aquele produto. Na verdade, tive um turbilhão de sentimentos e pensamentos, questionamentos e mantive a calma e voltei ao que estava fazendo, graças a companhia da Luisa, que me resgatou desse choque.

Não tenho o intuito de simplesmente atacar a empresa Casa do Preto ou os profissionais envolvidos. O intuito não é esse. Seria fácil se fosse assim, mas quero o dialogo, o debate, a reflexão. Entrei em contato por escrito com a empresa, por email e Facebook, solicitando se existir, o material de identidade visual, ou alguma explicação verídica sobre o nome e toda a forma de comunicação.

Há uma versão da história. Segundo o blog Classe a Parte, um senhor comprou o local que tinha uma escultura de madeira de uma figura masculina preta a porta da casa, que permaneceu e assim,  batizando o estabelecimento de Casa do Preto. Verídico ou não, ainda não é suficiente para sustentar o que esta representado desde aquele tempos, até hoje. Não quero impor nenhuma regra, repito, quero a reflexão de tantos questionamentos que tive assim que vi a embalagem.

Essa linguagem gráfica representa a empresa? Quem é o homem preto servindo travesseiros? Qual o motivo dele estar com essa expressão facial? E essa postura física? Essa roupas? Quem é o Preto? Qual o lugar dele nessa Casa? Ele é o dono da formula dos travesseiros? É um empreendedor bem sucedido? Quem ele representa? A quem ele serve? As pessoas pretas devem ser representadas dessa maneira? Qual o impacto dessa linguagem visual em nossa sociedade?

Há respostas para tais questões?

“Casa do Preto”

A mensagem que a marca deixou pra mim passa longe daqueles arquétipos tradicionais e conceituais de identidade gráfica como confiança, força, presença, etc. O que eu senti, que foi transmitido é a existência de uma pessoa negra, com expressão passiva, postura tímida, que está apenas ali para servir, e nada mais.   Falo mais uma vez, o desejo de entrar em contato com a empresa e ter acesso ao material de toda linguagem gráfica presente nela, mas até lá, a sensação é essa.

Sem duvida temos uma enorme responsabilidade social que extrapola qualquer posição trabalhista, empresarial, politico, etc. Vivemos em sociedade, cada vez mais em busca de uma representação digna e igualitária. Toda empresa deve ter isso em mente, principalmente por usar os artefactos de design, naming, marketing, etc para atrair clientes e girar seu negocio. Isso acima de tudo, de forma consciente e responsável. E por isso, e vários outros motivos, EU, passarei longe de todos os produtos da Casa do Preto (apesar de ser um bom apreciador de doces e embalagens).

Mais uma vez, repito. Não quero atacar ninguém. Quero a reflexão e o pensamento crítico. Estou aberto a diálogos da maneira mais civilizada de todas, não apenas pela empresa citada no post, mas também da agência/estudio que cuida do branding, ou dos profissionais envolvidos, ou leitores do post que se incomodaram de alguma forma. Dialogo, ok?

Como o texto ficou longo, irei dividir em outra postagem para separar os tópicos. No próximo post vou mostrar outros exemplos  de representações de pessoas negras em publicidade, apresentar algumas referências e continuar o debate sobre o lado racista do design.

Se cuidem e até lá!

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